sexta-feira, 15 de abril de 2016

Encontros de Viagem

Há mais de um ano comprei um Moleskine só para recordar as andanças pelo mundo. Anotações do antes, durante e depois. Uma espécie de edição privada de experiências que, por motivos óbvios, não caem publicamente em um blog. Mas com o ritmo da pesquisa, do fluxo de viagens e das coisas paralelas que aparecem pela vida, meu caderninho estava lá guardado, mofando. Eis que o ressuscitei no último fim de semana, mas antes precisei passar por uma tiragem de imagens, mapas e passagens aéreas antigas. Comecei a selecionar algumas fotos para imprimi-las (Aliás, meu próximo post será um ode às fotografias reveladas!). Mas esse processo pode ser mais complicado do que parece — um HD externo com cliques de diferentes passeios, organizados por cidades, datas, países e se bobear até por diferentes equipamentos. Todo essa chorumela é para dizer que, desde então, não consigo tirar o Omar da cabeça!
Estou falando desse garotinho aí da foto. Conhecemos esse marroquino em miniatura perambulando pela medina em Fez. Ao contrário dos moleques que tentam a todo custo enganar turistas e mostrar qualquer coisa para arrancar-lhes uns trocados, o Omar ainda tinha aquele olhar pueril, que não dá para ignorar. Concordamos em deixá-lo nos levar até a área da milenar tinturaria de couro. Andávamos já há horas, sentíamos o mau-cheiro, mas não encontrávamos o local. Orgulhoso e saltitante lá foi ele a nossa frente esboçando palavrinhas em francês e espanhol. Os  adolescentes olhavam com raiva por ele ter “ganhando” os turistas, enquanto os mais velhos, sentados nas calçadas, sorriam e balançavam a cabeça com um tom de “esse moleque leva jeito”. Claro que ele ainda não sabia bem lidar com a malandragem local. Foi pulando de laje em laje, pelas casas das pessoas, como sempre fazia. Mas, a presença de dois forasteiros chamou a atenção de um morador que resolveu cobrar um “pedágio” pela vista privilegiada. Nada que umas moedinhas não resolveram, mas cortou o coração ver o pequeno ali tentando negociar e explicar o que fazíamos por lá.
Estávamos sem o dinheiro local e no fim do passeio demos um euro (o que no Marrocos é bastante para uma caixinha). O Omar fez aquela cara de decepção, disse que não conhecia aquela moeda. Mostrou para nós uma nota de dirham quase sem valor e queria que a gente tirasse uma daquela do bolso. Fugimos do imbróglio e o deixamos lá com seu olhar entristecido. No dia seguinte, fomos almoçar num restaurante local, sugerido pelo guia. A senhora cozinhava e o marido servia. E adivinha quem estava por lá? O próprio. Ele era o filho mais novo e ficava saçaricando entre as mesas. Ao nos ver, chamou os pais, mostrou a gente, falou feito um tagarela chacoalhando os braços... Deduzimos que ele aprendera, no dia anterior, o significado do câmbio. E tentou por todo o almoço nos convencer a mais um passeio! Dessa vez sem sucesso. Nos despedimos dele ali, depois da refeição. Nunca mais o vimos. Acredito que ele ainda esteja percorrendo as ruelas estreitas da medina. Tudo que temos do pequeno é esse retrato. 
Há pessoas dignas de serem lembradas, mesmo quando o contato pessoal se reduziu a alguns poucos dias. Samer Kokaly é um deles. Ele poderia ser um guia turístico qualquer, mas sua determinação e consciência social eram marcantes. Ele morava em território palestino, trabalhava em parceria com ONGs israelenses, e organizava passeios altamente informativos. Sua proposta era tirar os turistas da rota tradicional, organizar almoços com famílias muçulmanas e quebrar preconceitos por meio do contato e aproximação. Veja, um católico vivendo na Palestina, ajudando a quebrar clichês sobre o mundo muçulmano e em parceria com organizações judaicas-israelenses. O mundo seria melhor se todos se misturassem assim. Chegamos a telefonar depois da viagem, ele me ajudou a fazer uma matéria sobre a situação social em Hebron, mas tudo que restou foi sua foto no meu Skype!
Não sou sentimental, acho que um certo desprendimento é mesmo necessário. O que acontece em uma viagem, fica na própria viagem. Senão a lembrança deixa de ser algo bom e nos prende ao que já passou, nos impedindo de fazer novos planos e encontrar outras pessoas, que agregarão novamente. Só me arrependo de não ter pegado um e-mail ou telefone de uma mulher desconhecida em Atenas. Sentada numa mesa ao lado de um bar, acompanhada de um espanhol bem atraente, ela literalmente se intrometeu na nossa conversa. Perguntou qual língua falávamos e, papo-vem, papo-vai, nos convenceu a ir até Delphi. Naquele momento, há muitos anos, ela nos viu como crianças. Explicou como chegar sem precisar se juntar a uma excursão, divagou sobre os Deuses, a energia cósmica (sim, ela tinha um quê de hippie de 68), pagou nossas bebidas e sumiu. Nunca pude contar para ela que segui seu conselho, mas volta e meia lembro da moça. 
Por fim, há também aquelas pessoas com as quais nos comunicamos somente por gestos. Visitei por quase uma hora uma aldeia no Delta do rio Mekong. Uma senhorinha, magrinha e de ares modestos ensinava as pessoas a produzirem o papel de arroz. Ela nos olhava com curiosidade, ria dos nossos desajeitos culinários e seguia com a produção naquele calorão. Contaram-me que ela tinha 90 anos. Pensei como seria passar uma semana inteira ali, fiquei tentada com a possibilidade. Queria perguntar se ela conhecia quiçá a capital do seu país ou se seu mundo era aquele ali às margens do rio. Ela me mostrou, à maneira dela, as belezas de uma vida sem IPhone, GoPro, Canon e aparatos mil que carregamos conosco. Não sei como ela está, mas o doce de banana caramelizada com amendoins, preparado por ela, ainda está delicioso na minha geladeira. 

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